segunda-feira, 26 de outubro de 2015

PARTE DO LIVRO - FOLHA CONTA

100 ANOS DE CINEMA - 1995
Arnaldo Jabor
Às oito e meia da noite de 16 de março de 1964 eu não sabia que minha vida ia mudar. As nove horas ia passar pela primeira vez no Brasil o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.
Três dias antes, eu estivera no comício de Jango na Central do Brasil, onde a noite caíra estrelada por milhares de tochas de petróleo que os trabalhadores da Petrobrás erguiam como personagens de Eisenstein e eu olhava apaixonado o rosto da primeira dama no palanque.
Como era bonita Tereza Goulart, com um penteado alto de laque dos anos 60, morena, sexy, ali, em pleno momento épico das reformas de base (eu me sentia culpado de desejar a primeira dama numa hora tão grave). Todos nós sentíamos históricos, como caídos de repente na praça amotinada de São Petersburgo ou vendo a decapitação de Maria Antonieta na Bastilha.
Eu estava ali dentro, mas não me sentia parte daquilo tudo. Estranho, um presidente da República pedindo apoio a uma multidão de miseráveis para salva -los. De quê? Sua mulher parecia alheia, linda, intocada por aquela massa. Será que ela o amava? Será que o traía?
O épico e o psicológico corriam separados ali, em duas partes, e eu me sentia inquieto com essa divisão- Tudo parecia tão longe, mas certamente até hoje aquelas tochas, aquele vestido azul da primeira dama, a louca bravata de Jango, tudo isso mexe com tua vida, ou dançarino punk do Massivo - ! Uma revolução seria feita, mas não rolou nada. Dali a três dias, num cinema do Rio fez se uma.
Carregado com essas emoções, três dias depois, fui chegando a porta do cinema Ópera na praia de Botafogo. Era lindo e imenso o Ópera e ia com minha namorada Thereza Simões, com quem percorri depois um trem fantasma de amor e ódio.
A platéia se enchia de personalidades de esquerda carioca. É preciso que vocês entendam - pálidos intelectuais de hoje- que o mundo real era uma miragem ideológica, uma projeção de nosso desejo, naquele verão de trinta anos atrás no Rio, quinze dias antes do general Mourão Filho descer com seus tanques de realidade.
O público do filme era formado por mais do que simples pessoas, eram Ilhas de idéias. Havia uma gama de tipos, de cores, de maneiras de ver o mundo, todos com a marca aguda da " mudança", todos operando para mudar o país, todos vagamente se desprezando. Sempre havia alguém a tua esquerda. Havia o partidão, solidamente vigilante para com os revisionistas burgueses. As esquerdas tinham ali uma curiosidade tolerante para com estas manifestações artísticas da superestrutura, todos mal vestidos, de passagem entre uma panfletagem e outra.
Havia os membros da Açâo Popular fundada, entre outros, por nosso Betinho, uma costela mineira e católica da esquerda independente. Havia os festivos de Ipanema pseudotrotskistas, país da Libelu, havia polopistas da política Operária, havia o Cinema Novo - lembro de Joaquim Pedro, de Ruy Guerra, de Leon, Cacá- todos de camisa de marinheiro e calça jeans.
Eu apertava a mão de Thereza e via essa massa toda em segundo plano, tendo como perfil essencial o rosto de minha amada, eu que nunca filmara, que era tratado como um reles noviço pela corte do cinema Novo, cruel, olímpica.
E aí o filme começou. Um plano aéreo do sertão de Cocorobó. Corte súbito para o olho morto de um boi roido de sol. Villa Lobos na trilha. E caiu um silêncio sideral na sala. Todos os olhos estavam feridos por imagens absolutamente novas. Como explicar isso? Não era apenas um bom filme que víamos. Era um país que nascia a nossa frente. Não um país que reconhecíamos como, digamos de Graciliano. Era uma realidade desconhecida que começavamos a compreender. Ela esteve esboçada na literatura, em Os Sertões, em Rosa. Mas, no olho, era a primeira vez.
Em Deus e o Diabo estava o herói miserável, mas também o matador nao era vilão. Antonio das Mortes era tocado de funda dor e do desejo de exterminar a miséria. Bons e maus andavam num deserto metafísico e shakespeareano em pleno Nordeste.
A esquerda estava ali, a beira de sua grande derrota e ainda teve tempo de ver sua melhor produção nascer. Todas as personagens se contorciam numa danação de heróis e vítimas, em uma complexidade que não tínhamos alcançado. Não sabiamos ainda, mas estava selada ali a causa de nosso fracasso de 1 de abril de 64.
O filme dava conta dessa luta entre o grosso e o sutil. Vemos a esquerda se perder em discussões iguais a de trinta anos atrás. Veio 64 e 68, veio a luta suicida a democracia formal.

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